domingo, maio 21, 2006

Um conto... só nosso

Publiquei sem permissão...


"Você o Tempo Todo"
Num tempo longe, num tempo longe da cidade, longe dos mesmos, longe dos repetidos olhares de julgamentos. Distante, de casa, das manhãs no trânsito monótono, dos ambientes que não inspiram as músicas que se gosta de ouvir. Com alguém que afasta, afasta os pensamentos rudes, afasta os apertos do coração, afasta as desconfianças de si, as dúvidas sobre o que se pode e sobre até onde se pode. Deixando para trás, para trás qualquer resquício de mágoa passada, qualquer lembrança de pessoas que trouxeram tristeza, toda e qualquer imagem que não se faça ir adiante com esperança.
Quando se guarda o coração, guarda-se para que? Para onde se vai sem a certeza de que alguém irá conosco?
- Paloma, aonde você vai?
- Vou sair, e já estou indo!
- Volta quando?
- Logo, vou sumir uns dias mas volto. Não se preocupe que eu volto.
Deixara a barriga de fora, pensara: "Será que essa blusa combina com esse tempo?" Suas blusas combinam com qualquer coisa, Paloma. "Ah, que se dane, a blusa é minha e a barriga também!"
Os gatos passearam entre suas pernas como se soubessem que ela estava indo. E eles sabem, sempre sabem tudo sobre ela, são os que sabem mais. Tudo ao seu redor cheirava diferente, algo bem natural, como tangerina, não era bem isso, mas parecia. "Que cheiro gostoso! Estranho, de onde vem?" Ah, Paloma, você não sabe que quando seu rosto de charmes tantos está sorridente tudo cheira feito tangerina?
Ontem à noite ela ouviu tiros. Pela manhã, uma criança adoentada na calçada, um idoso sofreu uma injustiça na sua frente. O caminho da rodoviária foi penoso. A cidade está doente, as ruas estão cinzentas, as pessoas com feições preocupadas. Ela vai ajudar a mudar tudo isso, é o que deseja. Mas hoje não, hoje ela irá, isso, ela irá. Seu objetivo é restabelecer-se, recuperar tudo o que perdera, os bens feitos de vento, daquilo que não se pode tocar, todos esses bens que ela perdera por aí. Perdera nas suas apostas, nos seus últimos caminhos, nos trajetos sinuosos e desviantes pelos quais passara. Caminhos tais que também trouxeram virtudes: atenção, cautela, fortaleza, ânimo pelo novo. Cicatrizes são as marcas de um bom soldado, do soldado que luta sempre o bom combate. Está pensativa, um pouco inquieta. Logo passará. Quer reaver lentamente os dias de sua vida que passaram rápidos demais! Paloma ajeita o cabelo por sobre o ombro direito, respira fundo, tem uma caneta nas mãos, escreve qualquer coisa nas costas do banco na sua frente. A gente sempre escreve a vida por aí, nossas palavras quase sempre se perdem sem que alguém as perceba. Mas a gente ainda assim escreve, na esperança de que alguém nos leia, nos entenda e perpetue nossos sentimentos para a eternidade.
A viagem é longa e, no entanto, reconfortante. O vidro da janela permanece constantemente embaçado devido à chuva e ao ar-condicionado do veículo. Paloma tem sono. Descansa sua cabeça no colo dele, gosta de receber afagos na nuca, e cheiros na cabeça, e na mão. E nos dedos, e nas costas, e na orelha... Paloma é como seus felinos, manhosa, se faz de preguiçosa (quase sempre é, mas de vez em quando se faz apenas). Gosta de espreguiçar-se, de encostar-se às pessoas, como se tivesse perdido a noção de espaço. Seus cílios disformes enquanto tem sono só fazem realçar o encanto que é seu olhar afetuoso.
- Será que ainda vai demorar muito essa viagem? – ela pergunta.
- Acho que sim.
- Ah, que bom! – com cara de sapeca, feito uma criança.
Nunca um fim-de-tarde fora tão lindo. É seu terceiro dia longe de casa, perto de tudo. Ela anda descalça pela relva, há muita relva ao seu redor. Como quem nunca vira tais belezas, a garota visita cada árvore que vê, segura suas folhas, úmidas pela chuva dos últimos dias. Vai na direção do curso d’água. Um rio, límpido, ao lado de uma casa, quase inacreditável. Ela vai às pedras, senta numa das mais altas, e fica a observar a água que passa e que não vai voltar. Os pássaros que voam alto e que não vão voltar. O tempo que sopra seus cabelos numa brisa arrebatadora e que não vai voltar. De um instante para outro sente um aperto no coração, seus olhos enchem-se de lágrimas. Ela segura o pranto, seria um pranto novo, diferente, sobre-humano, tão óbvio, bem próprio de Paloma. Seria de alegria, seria parecido com aqueles que vêm quando gostaríamos que todos os nossos estivessem ali, mas não estão. É um lacrimejar de sossego, de descanso, depois de um contentamento indescritível que passara pelo coração. Calafrios lhe correm pelos braços. Ela ajeita o cabelo de novo, arruma a franja que prometera cortar (não corte não, Paloma!).
Pessoa nenhuma passa por perto. Segue um real distanciamento de tudo que se acostumara. Lembra da noite que passara. Entendera tudo o que dele sempre ouvira. Fecha os olhos e tenta lembrar dos detalhes, das risadas, do vinho chileno, das cócegas. Dos pães-de-queijo divinos, das palavras que ele soprara nos seus ouvidos, do jogo de sedução, da música que cumpria muito bem sua função de catalisadora daquilo tudo, dos toques de mãos, dos olhares promissores, dos abraços de proteção, do edredom ao chão, do frio do assoalho, dos beijos que lhe afastaram de todo medo. Levanta a barra do vestido rodado, azul, e coloca os pés na corrente de água fria, para transmitir aquela sensibilidade para todo o corpo. Arrepia-se, fascinante! Caso fosse um conto qualquer de ficção, o autor faria questão de colocar um esquilo, ou um coelho, passando por ela nesse exato momento, para detalhar e enfeitar mais a cena. Mas aí seria forçar a barra demais. Fica só a menina, a água, o vento, seu vestido rodado (quem diria) e seus pés descalços.
- Meu bem, entre logo, vai esfriar. Depois você vai se queixar daquela tosse chata! – ouve uma voz alta, rouca, vinda da varanda nos fundos da casa.
- Já vou, meu lindo!
Carregando as sandálias nas mãos, entra na cozinha, é agarrada de surpresa e solta um grito, seguido de uma risada contagiante. O cheiro da ervilha cozinhando e da lata de azeite aberta dominam o ambiente.
- Vou mudar de CD, posso? – pergunta a ele.
- E adiantaria se eu dissesse que não?
- Que horas tem? Escureceu rápido.
- Esquece o tempo, querida. Ele vem e some mesmo, só não pode nos dominar. O importante é não sermos os mesmos enquanto ele passa.
Paloma agora sorri. Ela preocupava-se porque andara sorrindo pouco nas últimas semanas. E todos os que lhe querem bem também sentiram falta do júbilo que era sua alegria contagiante.
Paloma gosta de coçar o cotovelo. Ela, quando pára e pensa em algo, nos seus momentos de abstração, tem esses gestos tão pequenos, singelos e divinamente fabulosos!
Paloma tem pintas por todos os lados. Parecem os retoques finais de um quadro único, daqueles que dominam uma parede inteira dos museus de obras raras.
Paloma bebe água a todo momento. Ninguém consegue definir muito bem o porquê, mas acredita-se que seja apenas um dos seus muitos cuidados com a saúde. Mesmo no frio, hidratar-se é importante (como aprendera com a mãe).
Paloma, às vezes, senta no chão, aleatoriamente! E o fizera de novo, mas "- Não faça isso, meu bem, o chão pode fazer seu nariz reclamar!"
Paloma fica saltitante quando está animada. Seus trejeitos parecendo infantis só realçam suas qualidades tantas de mulher madura, que já sabe o que quer. (Sim, agora ela já sabe o que quer).
- Ah, a água do chuveiro não esquenta, o que aconteceu? – ela reclama fazendo sua habitual manha.
- Meu Deus, que mulher complicada! – ele diz fazendo graça.
Ela lhe faz uma careta e sai dançando pela casa, deslizando suas mãos pelas paredes e levantando as cortinas. É hora de acender a luz, o dia já passou.

Um comentário:

Anônimo disse...

Belo conto... Feliz o cara que pode ver uma mulher dessa forma!